A Multipropriedade Imobiliária

 Por Alfredo de Assis Gonçalves Neto

1.    Introdução

A atividade econômica é impulsionada pela atuação inventiva dos agentes econômicos que, a todo instante, estão a testar novas modalidades de contratar visando à redução dos custos e riscos de seus empreendimentos.

Voltadas para a otimização dos resultados, as diuturnas negociações evidenciam a necessidade de aperfeiçoar e de uniformizar o modo de atuar pela padronização de condutas e pela criação de novos modelos negociais. E é nessa dinâmica que deve ser enfocada a distinção que há entre as obrigações oriundas dos contratos empresariais e as que exsurgem dos contratos celebrados entre não empresários no âmbito do direito privado.

Não é por outra razão que os usos e costumes sempre tiveram e continuam tendo papel preponderante na formação do direito comercial. No mundo empresarial fervilham os contratos atípicos, os quais recebem acolhida expressa no artigo 425 do Código Civil brasileiro e se inserem harmonicamente no seio de nosso ordenamento jurídico, enquanto observados os limites do vasto campo da liberdade de contratar, que dispensam tipificação legislativa.

No entanto, na prática contratual muitas vezes aparecem distorções que reclamam a intervenção do legislador, seja para coibir abusos, seja para corrigir efeitos indesejados ou para conferir segurança jurídica ao fim visado pelas partes contratantes. Essa intervenção, esse dirigismo contratual, tem-se mostrado frequente, como atestam, dentre outras, as leis que vieram regular, os contratos de concessão mercantil, de agência, de franquia, de comércio eletrônico, as startups e tantos outros.

A multipropriedade imobiliária nasceu na esteira desse modo de produzir direito. De fato, tal figura, de berço europeu e há algum tempo adotada pelos Estados Unidos da América do Norte sob a designação de “time sharing” (no vernáculo, “tempo compartilhado”), vinha sendo praticada no Brasil mediante contratos que estabeleciam direitos de uso periódico em imóveis de ocupação ocasional, normalmente destinados a veraneio, sendo posteriormente estendida a bens móveis de expressivo valor econômico, como barcos e aeronaves, para incrementar sua utilização.

Referidos contratos, contudo, embora conferissem uma quota de tempo exclusiva para o utente, não lhe outorgavam a segurança jurídica indispensável para garantir a manutenção do direito de uso obtido contratualmente. Essa preocupação chegou ao Superior Tribunal de Justiça em execução cuja penhora recaiu num imóvel assim partilhado (para uso por determinado período de tempo a cada ano) por dívida do titular de seu domínio. Para contornar o problema, o STJ, em decisão de juridicidade discutível, considerou, por apertada maioria, que esse direito de uso, conquanto estabelecido em contrato, teria gerado um direito real e, portanto, oponível contra todos (erga omnes).[1]  

A Lei 13.777/2018 veio resolver esse problema com a criação da multipropriedade imobiliária, certamente inspirada nos trabalhos de Gustavo Tepedino[2], que pioneiramente tratou do tema em nosso País.

Com isso, consciente ou inconscientemente, o legislador pátrio respondeu ao duro golpe que referida decisão infligira na tipicidade dos direitos reais, ao tentar criar outro, além daqueles que a lei previa. O aspecto importante desse julgado foi apontar a necessidade de essa prática contratual converter-se em lei.

2.    Conceito de multipropriedade imobiliária

A multipropriedade imobiliária, a teor do art. 1.358-B do Código Civil,  “é o regime de condomínio em que cada um dos proprietários de um mesmo imóvel é titular de uma fração de tempo, à qual corresponde a faculdade de uso e gozo, com exclusividade, da totalidade do imóvel, a ser exercida pelos proprietários de forma alternada.”

Verifica-se, de plano, que essa figura jurídica não é um novo direito real sobre a propriedade, pois capturou o tempo para utilizá-lo como uma até então inusitada maneira de dividi-la. Não se seguiu, aqui, o exemplo de países que optaram por criar um novo direito real, incidente sobre a propriedade, como se deu em Portugal, por exemplo, com seu direito real de habitação periódica, regulado pelo Decreto-Lei n.º 275/1993. Trata-se, portanto, de um desdobramento do direito de propriedade e não de um direito real sobre coisa alheia, no qual a propriedade sofre gravame com a instituição do direito de uso ou de habitação sobre ela.

Por outro lado, se há unidades autônomas com propriedade plena do condômino pelo período de tempo determinado no ato de criação da multipropriedade,  não só o direito de uso e gozo lhe é inerente, mas, também, o de livre disposição, como se extrai, aliás, do disposto no art. 1.358-I, inc. III, do Código Civil.

Também se observa que nesse conceito não estão contemplados os bens móveis, que, por igual, têm sido objeto de ajustes de utilização periódica, não só no exterior (modalidade denominada no ambiente internacional de fractional ownership), como no Brasil. Isso não quer dizer que, com a regulação legal da multipropriedade imobiliária, ficou proibida a prática de compartilhamento de móveis do modo como já vinha sendo celebrada, dada a ausência de proibição legal.

Contudo, fica a questão de saber se aos bens móveis podem ser aplicadas as disposições desse novo instituto. Sabe-se, a propósito, que, em se tratando de bem imóvel, a constituição do direito de propriedade efetiva-se com seu registro na matrícula do imóvel, que é o meio legal de comprovação da propriedade imobiliária (Código Civil, arts. 1.227 e 1.245), ao passo que os bens móveis não possuem um registro que lhes seja próprio, sua propriedade é presumida pela posse e eles se transferem pela simples tradição (arts. 1.226 e 1.267). O fato de se poder realizar o registro de eventual instrumento de transmissão da propriedade em cartório de títulos e documentos não dá eficácia à divisão temporal do móvel, visto que a lei não lhe confere efeito constitutivo de direito real, nem seria plausível pensar que o registro nesses ofícios confere a publicidade necessária para conhecimento de terceiros. Aliás, é bom obtemperar que tais registros, pela quantidade de ofícios existentes no Brasil e pela falta de um sistema de integração, nenhuma publicidade efetiva asseguram, senão a comprovação da data em que o documento é ali apresentado e da entrega de notificações ou interpelações extrajudiciais ao destinatário.

É bem verdade que alguns bens móveis, mas não todos, possuem um sistema de registro de propriedade, como os veículos automotores, os navios e as aeronaves.

No que se refere aos primeiros, seu registro no órgão de trânsito não é constitutivo da propriedade, porém, simplesmente declaratório, visto que a propriedade se presume pela posse e sua transmissão é operada no momento da tradição (Lei 9.503/1997, arts. 120 e ss).

No que tange a embarcações marítimas ou fluviais e a aeronaves, por receberem tratamento semelhante ao dos imóveis e ser seu registro atributivo da propriedade (Lei 7.652/1988, art. 4º; Lei 7.565/1986, art. 115), pode-se sustentar a possibilidade de submetê-las ao regime jurídico da multipropriedade imobiliária.

Ainda assim, restaria a polêmica quanto à constituição de direitos reais por analogia, visto que referidos bens são móveis, submetidos por lei ao tratamento jurídico dos bens imóveis. Sob minha ótica, a liberdade de contratar permite a extensão da multipropriedade a esses bens, visto que lhes é conferido o tratamento reservado aos bens imóveis, salvo quando com eles for incompatível. E não há incompatibilidade que possa comprometer a extensão dessa nova maneira de divisão de imóveis aos veículos de navegação aérea e aquática. 

Com essas considerações, penso que é possível retomar o conceito de multipropriedade, com o acréscimo do qualificativo “imobiliária”, para dizer que é o regime condominial no qual os condôminos são proprietários plenos e exclusivos de unidades autônomas de tempo em que é dividido um imóvel, cada um deles a exercer, por um período determinado, de forma alternada e com exclusividade, todos os direitos inerentes ao domínio (uso, gozo, disposição e reivindicação), e, ao mesmo tempo, proprietários em comum do intervalo de tempo que separa essas unidades, das  instalações e dos bens que guarnecem o mencionado imóvel.

3.    Natureza jurídica

Ao se referir a regime de condomínio, a lei está a classificar a multipropriedade imobiliária como uma espécie de condomínio, semelhante, mas não igual ao que é tratado nos arts. 1.314 e seguintes do Código Civil. A ele se assemelha quanto ao estado de comunhão que se estabelece entre os condôminos, ou seja, por lhe ser inerente uma propriedade comum do imóvel em regime de multipropriedade, assim nos intervalos vazios, como nas dependências, mobiliários e instalações nele existentes; dele se distancia, porém, por conter, além da propriedade comum, uma propriedade exclusiva do imóvel no curso da unidade de tempo de titularidade de cada condômino.

E, nesse último ponto, espelha-se no condomínio edilício e no condomínio de lotes, encontrando nas disposições que os regulam – mais precisamente, nas do primeiro deles (art. 1.558-A, § 2º) – a complementação de seu regime jurídico.

Dessas considerações resulta a conclusão de ser a multipropriedade imobiliária uma nova espécie do gênero condomínio especial, na qual se inserem o condomínio edilício e o condomínio de lotes, que, como estes, combina propriedade individual com propriedade coletiva. É, em suma, uma nova modalidade de condomínio que se soma a essas duas por resultar, como elas, “da conjugação orgânica e indissolúvel da propriedade exclusiva e da copropriedade.”[3] Aparta-se delas, contudo, porque o multiproprietário não convive com os demais no desfrute de seu direito de propriedade sobre o imóvel; esse imóvel, suas instalações e os acessórios que o guarnecem, é exclusivamente dele durante a unidade temporal que lhe pertence.

Por outro lado, sob o ponto de vista das relações jurídicas que os condôminos mantêm com terceiros por meio de um administrador por eles escolhido, a multipropriedade imobiliária é, ainda, a igual do que se passa com as outras figuras condominiais especiais, um centro de imputação de interesses pelo qual um administrador vincula todos os condôminos no exercício de direitos e na assunção de obrigações de interesse comum. Com tal qualificação, embora não se alce à condição de pessoa jurídica, a multipropriedade imobiliária deve possuir um nome que a identifique e a distinga de outras e tem legitimidade para, por meio de seu administrador, cadastrar-se no CNPJ, ser parte nas relações jurídicas com terceiros, outorgar mandatos, inclusive para participar de arbitragem e para atuar perante o Poder Judiciário  (CPC, art. 75, inc. XI), etc.   

4.    Características

Como figura condominial especial, semelhante ao condomínio edilício ou de lotes, a multipropriedade imobiliária tem como traço marcante, como já anotado, a harmonização da propriedade comum com a propriedade exclusiva.

Mas há, ainda, outras duas características que a marcam e merecem revelo.

Uma vez instituída a multipropriedade, o imóvel sobre o qual recai torna-se, no dizer da lei (art. 1.358-D, inc. I), indivisível – expressão a significar a proibição de ser adotada qualquer iniciativa de nele introduzir modificações que afetem o direito de propriedade de seus condôminos, tal como lhes foi outorgado. A característica de indivisibilidade, portanto, não permite que a maioria dos condôminos decida a respeito de qualquer divisão, nem mesmo por deliberação em assembleia geral. É evidente, porém, que, se todos os condôminos o quiserem, a multipropriedade pode ser modificada, redividida ou extinta. Essa mesma indivisibilidade estende-se à fração de tempo de cada condômino (art. 1.358-E), de modo que seu proprietário também não possui o direito de fracioná-la, mantendo-a tal como a recebeu e conforme a descrição constante da respectiva matrícula.

A outra importante característica é a isonomia entre os condôminos, assim compreendida como o direito de todos a um tratamento igual, na proporção das frações de tempo por eles adquirida, sendo vedados tratamentos diferenciados fora das balizas assim definidas. Esse é o vetor que orienta a compreensão da norma contida no art. 1.358-E, § 2º, do Código Civil. De fato, tal enunciado, aparentemente ambíguo, quando alude ao direito de “todos os multiproprietários à mesma quantidade mínima de dias seguidos durante o ano”, está a se referir à fração de tempo (unidade autônoma de tempo) pertencente a cada multiproprietário, não impondo que ela seja igual para todos eles, tanto que permite a aquisição de unidades com lapsos de tempo maiores – e não apenas maior quantidade delas – a comprovar que a multipropriedade pode ter unidades de tempo autônomas de variadas dimensões.

5.    Classificação

A multipropriedade pode ser dividida em graus de complexidade. Será de complexidade simples, quando instalada em um imóvel não condominial; será de complexidade média, quando instituída em um condomínio edilício ou de lotes; e será de complexidade alta quando for acrescida de locação e (ou) de hospedagem. Essa distinção é importante por haver tratamento diferenciado para cada uma dessas situações, consoante a necessidade ou não de unificar as administrações (por haver sobreposição de condomínios) e de conferir maior proteção ao giro das ocupações.

Quanto ao imóvel em si, objeto da multipropriedade, não há discriminação legal de tratamento nem restrição à escolha, senão sob o aspecto prático, de se prestar ou não para os fins que a multipropriedade deve com ele atingir (uma casa, uma fazenda, um terreno rústico ou urbano, um condomínio edilício ou de lotes etc.).

Já no tocante à forma ou maneira de seccionar o tempo de cada unidade, são previstas três alternativas (CC, art. 1.358-E, § 1º), a saber: (i) período fixo e determinado, (ii) período flutuante e (iii) período misto. No primeiro deles, fixo e determinado, a unidade autônoma terá sempre o mesmo período em cada ano, como, por exemplo, do dia 10 ao dia 23 de janeiro. Já no flutuante, o período é variável, estabelecido sem uma data precisa, alterando-se a cada ano ou a cada espaço de tempo abrangido pela multipropriedade (dois anos, por exemplo). Nesse caso, deve ser estabelecido, previamente, um procedimento objetivo – como um sorteio ou um revezamento –, que assegure tratamento isonômico entre todos os multiproprietários. No misto tem-se a combinação dos dois anteriores, com um período fixo e determinado e outro flutuante para a mesma unidade.

No tocante ao número de unidades autônomas por proprietário, não há limite, de modo que uma só pessoa pode ser titular do domínio de todas as unidades autônomas, de algumas ou de uma só, salvo previsão limitativa contida no instrumento de instituição da multipropriedade ou no de sua convenção (art. 1.358-H). 

6.    Outras particularidades

É difícil em uma única frase identificar um instituto com todos seus pormenores. No caso da multipropriedade imobiliária, efetivamente, há outros detalhes que a particularizam.

6.1. Dimensão do tempo das unidades autônomas

O período de tempo conferido a cada multiproprietário para exercer seus direitos de propriedade plena no imóvel deve ser fixado no ato de constituição da multipropriedade imobiliária e cada qual compõe uma da unidade autônoma de, ao menos, 7 (sete) dias (CC, art. 1.358-E, § 1º). Respeitado esse mínimo, é permitida qualquer variação, inclusive, a de a própria unidade autônoma ter dias intercalados, contanto que sua soma atinja ou supere o piso legal.

Assim, em uma casa de veraneio pode ser instituído um regime de multipropriedade com a divisão do tempo ao longo de um ano, contendo unidades autônomas de 7, 10 ou mais dias, corridos ou intercalados, mesmo para a da fração temporal mínima (v. g., dias 21, 22 e 23 de fevereiro; e 2, 3, 4 e 5 de outubro).

Por outro lado, uma vez observado o lapso mínimo para cada unidade (de 7 dias inteiros), não há outra limitação, de modo que é possível, também, definir sua fração de tempo em horas (v. g., 10 dias e 12 horas) – o que pode ser conveniente para possibilitar a limpeza e eventuais reparos. As unidades, de sua vez, podem ser criadas com tempos desiguais, v. g., uma com um período de 10 (dez) dias, outra de 1 (um) mês, outra de 6 (seis) meses e assim por diante.

Convém acrescentar que a multipropriedade tem como referencial para sua implantação  o espaço de tempo de um ano, como se extrai das disposições contidas no art. 1.358-E, inc. I, e § 2º, do Código Civil. Contudo, não me parece haver impedimento para que ela seja instituída com abrangência de tempo menor, contanto que confira aos multiproprietários “a mesma quantidade mínima de dias seguidos durante o ano” (§ 2º). Vê-se, porém, que um período de tempo maior não encontra acolhida nos referidos preceitos legais.

6.2. Administração de coisa comum

Outra particularidade da multipropriedade é a de, à semelhança do que se passa nos condomínios edilícios, nela haver uma administração da propriedade comum, que decorre do direito de os condôminos compartilharem os direitos e obrigações que lhes são atribuídos nas partes de uso geral – estas indispensáveis para a própria existência desse condomínio temporal. Móveis, utensílios, instalações e tempo de intervalo são de propriedade de todos os condôminos, de sorte que precisam ser administrados por um deles ou por quem seja por eles escolhido para geri-los.

Essa administração, quando se tratar de um imóvel isolado, como uma casa ou um terreno rústico ou urbano, no qual é instituída a multipropriedade, não está sujeita a regras especiais, senão às que traçam as atribuições e responsabilidades do administrador, o qual será uma pessoa física ou jurídica designada no ato que institui o condomínio ou escolhida pelos condôminos em assembleia geral condominial.

Diferentemente do síndico do condomínio edilício, tal administrador não possui tempo determinado de mandato, conquanto possam o ato de instituição ou a convenção da multipropriedade dispor de modo diverso. É possível, inclusive, que o próprio instituidor da multipropriedade ou a convenção indiquem, desde logo, a pessoa do administrador, o qual, porém, como pessoa de confiança dos multiproprietários, pode ser destituído ad nutum ou substituído por outro, a qualquer tempo, à escolha deles, observada a maioria qualificada prevista no art. 1.349.

Em se tratando de uma multipropriedade implantada parcial ou totalmente em condomínio edilício, a administração deve ser confiada a um “administrador profissional” (CC, art. 1.358-R) para atender, englobadamente, o condomínio edilício e todas as unidades autônomas da multipropriedade imobiliária que ali existir (art. 1.358-R, § 2º). Ao que parece, a lei não quis conferir tal função a alguém simplesmente diplomado em curso superior de administração, mas a alguma pessoa física ou jurídica que tenha experiência, por profissão ou objeto, na administração de condomínios, dada a complexidade de que tal situação se reveste. Note-se, a propósito, que o art. 1.538-S, parágrafo único, ao tratar das penalidades aplicáveis aos condôminos, refere-se à “administradora do sistema” e menciona, inclusive, as modalidades de locação e hospedagem. Além disso, tal administrador é investido de um poder extraordinário e discutível, que lhe permite alterar o regimento interno “quanto aos aspectos estritamente operacionais da gestão da multipropriedade no condomínio edilício.” (art. 1.358-R § 4º)

Parece ser de pouca relevância o fato de o art. 1.358-R ignorar que, no condomínio edilício, a administração é realizada por um síndico, embora síndico e administrador tenham, em regra, as mesmas funções. Porém, diante das atribuições especiais que lhe são conferidas, esse síndico ou administrador terá de observar, além das previsões estatuídas para o condomínio edilício, as concernentes à multipropriedade, de modo que passa a ter sentido essa distinção, não apenas semântica, mas, também, quanto à amplitude das atribuições e responsabilidades que advêm da assunção dessa mais complexa função. Nesse caso, o síndico do condomínio edilício, por ter de assumir a administração conjunta da multipropriedade imobiliária, passa a ser identificado pelo vocábulo “administrador” (profissional) ou “administradora”, sujeitando-se à já mencionada qualificação profissional.

Por isso, se a multipropriedade imobiliária é implantada, no todo ou em parte, em um condomínio edilício já existente, o respectivo síndico, se não possuir a experiência de um administrador profissional, terá, necessariamente, de ser substituído por quem a possua. Não me parece preciso haver um síndico e um administrador para o condomínio edilício, ambos com os mesmos poderes e atribuições de administrá-lo.[4] E aí o ato que institui a multipropriedade só poderá contemplar a indicação do administrador por mandato de no máximo 2 (dois) anos, adequando-se, nessa parte, às disposições referentes ao condomínio edilício (art. 1.347).

As atribuições do administrador de uma multipropriedade estão arroladas no art. 1.358-M, § 1º, além das que puderem estar já previstas no instrumento de instituição ou na convenção condominial:

“I – coordenação da utilização do imóvel pelos multiproprietários durante o período correspondente a suas respectivas frações de tempo;

II – determinação, no caso dos sistemas flutuante ou misto, dos períodos concretos de uso e gozo exclusivos de cada multiproprietário em cada ano;

III – manutenção, conservação e limpeza do imóvel;

IV – troca ou substituição de instalações, equipamentos ou mobiliário, inclusive, salvo previsão diversa da convenção:

a) determinar a necessidade da troca ou substituição;

b) providenciar os orçamentos necessários para a troca ou substituição;

c) submeter os orçamentos à aprovação pela maioria simples dos condôminos em assembleia;

V – elaboração do orçamento anual, com previsão das receitas e despesas;

VI – cobrança das quotas de custeio de responsabilidade dos multiproprietários;

VII – pagamento, por conta do condomínio edilício ou voluntário, com os fundos comuns arrecadados, de todas as despesas comuns.”

Não há menção à possibilidade de o administrador representar o condomínio em juízo, mas ela lhe é inerente, não só por aplicação supletiva das regras do condomínio edilício (art. 1.348, II), como em razão da previsão específica contida no art. 75, inc. XI, do Código de Processo Civil.

6.3. Órgãos de deliberação colegiada

A convivência dos condôminos exige mecanismos de definição da vontade e do agir coletivos. Para tanto, além da figura do executor dessa vontade (o administrador) é necessária a realização de reuniões, por meio de um órgão que manifeste essa vontade, o qual, no caso, é a assembleia geral, bem como a de um órgão de fiscalização e controle da adequada execução dessa vontade, que seria o conselho fiscal, não contemplado, expressamente, no regramento da multipropriedade. 

6.3.1. Assembleia Geral

Como os multiproprietários têm, não só o direito, mas a necessidade de se utilizar das partes comuns, devem ser previstas normas dispondo a respeito. E tais normas, se não estiverem no ato de instituição da multipropriedade imobiliária, deverão ser editadas para figurar nele ou no seu regimento interno – o que é feito pelos condôminos, mediante deliberação colegiada, em Assembleia Geral.

O Código Civil, ao mencionar essa Assembleia Geral, trata da participação e do voto do multiproprietário (art. 1.358-I, inc. IV, letras “a” e “b”); quanto à competência desse órgão, só é referida para a escolha do administrador (art. 1.358-M) e para a aprovação de orçamentos (art. 1.358-M, inc. IV, letra “c”). Nada mais é disposto a respeito, senão a faculdade de sua realização por meio não presencial (art. 1.358-Q, inc. VIII).

É preciso, por isso, que o ato de criação da multipropriedade imobiliária ou seu regimento interno regule detalhadamente o modo de proceder para a realização da Assembleia Geral, dispondo sobre a legitimação dos participantes, as formalidades para convocá-la, o modo de realizá-la, a ordem do dia, o quórum, as maiorias e as condicionantes para a tomada das deliberações, além do modo de registrar o andamento dos trabalhos e os resultados.

É muito importante que as assembleias gerais tenham regramento minudente e completo, pois, na omissão, ser-lhe-ão aplicáveis as regras que tratam das assembleias gerais do condomínio edilício e, na sequência, das que se contêm na Lei das Sociedades por Ações, as quais nem sempre são adequadas para atender aos interesses dos multiproprietários.

No que diz respeito a quórum para instalação e funcionamento das assembleias gerais e maioria para a aprovação das matérias objeto das deliberações, há algumas disposições imperativas, a respeito das quais os multiproprietários nada podem dispor, mesmo tendo caráter supletivo, visto que as disposições sobre condomínio edilício complementam o regime jurídico da multipropriedade e, por isso, antecedem as regulamentares.

É o caso da convocação da assembleia geral, quando o administrador não a convoca para atender pedido dos multiproprietários ou para a reunião anual. Tal convocação precisará ser feita por multiproprietários que representem frações de tempo iguais ou superiores a um quarto do tempo total das unidades autônomas da multipropriedade (CC, art. 1.350, § 1º).

Também a proibição de voto nas assembleias por multiproprietário inadimplente não pode ser afastada.

Já no que tange à realização de obras no imóvel, ainda exemplificativamente, devem ser observadas as disposições do art. 1.341 do Código Civil, o qual estatui que, se elas forem voluptuárias, dependerão de voto de dois terços dos condôminos; se úteis, da maioria dos condôminos; se necessárias e urgentes, podem ser realizadas pelo administrador, independentemente de autorização e até por qualquer condômino; se necessárias, mas não urgentes e importarem em despesas excessivas, dependerão de prévia autorização da assembleia geral, em deliberação aprovada por maioria simples.

6.3.2. Conselho Fiscal

Por outro lado, não há previsão de a multipropriedade possuir um Conselho Fiscal, bastante conveniente para acompanhar os atos de administração e opinar sobre a conduta do administrador e as contas do exercício. Não há restrição, porém, à sua adoção. E, sendo esse órgão criado, terá de observar a regra do art. 1.356 do Código Civil, segundo a qual referido órgão será composto por três membros, pessoas naturais sem previsão de qualificação especial, eleitos bianualmente (mesmo que o administrador não possua prazo de mandato), para dar parecer sobre as contas do administrador.

Aqui também se nota omissão quanto ao funcionamento desse conselho, o que, por força da regra contida no art. 1.358-B do Código Civil, leva à aplicação das disposições nele contidas, relativas ao Conselho Fiscal das sociedades limitadas (arts. 1.066-1.070).

6.3.3. Conselho Consultivo

Penso, no entanto, que tal conselho fiscal pode incluir as atribuições do Conselho Consultivo, de que cuidou a Lei 4.591/1964[5], para funcionar como órgão de orientação do administrador, “para assessorá-lo na solução dos problemas que digam respeito ao condomínio, podendo a Convenção definir suas atribuições específicas” (art. 23, parágrafo único).” Trata-se de um colegiado extremamente útil, que permite o acompanhamento mais próximo da atuação do administrador e, ao mesmo tempo, de apoio e orientação para suas ações.

A liberdade de contratar permite a inserção de outras atribuições, para além das previstas em lei. Porém, os respectivos membros, deverão ser escolhidos entre os multiproprietários (art. 23, caput, da mesma lei).

De qualquer modo, não vejo empecilho, senão econômico, à coexistência desses dois conselhos, cada qual com as atribuições que lhes são próprias.

6.4. Intervalo

Por outro lado, na multipropriedade é necessário – e não, apenas, conveniente – que seja estabelecido um lapso de tempo entre uma unidade autônoma e outra para limpeza, conservação e reparos, de modo que cada condômino possa receber sua propriedade exclusiva sobre o imóvel em perfeito estado (nas condições de uso, gozo e fruição previstas no ato de criação da multipropriedade).

Esse intervalo, apesar de não ser requisito da multipropriedade, é, efetivamente, indispensável e deve ser expressamente previsto e regrado no instrumento de sua criação (CC, art. 1.358-N). Seu formato e a fração de tempo de sua duração irão nortear-se, obviamente, pela análise das particularidades do imóvel e das injunções do mercado imobiliário em cada caso concreto; no entanto, ele precisará ocupar tempo adequado para que atinja sua finalidade (horas ou dias). Com isso, são evitados ou, ao menos, reduzidos problemas com eventual avanço no período de propriedade exclusiva de outro condômino.   

O intervalo não é res nullius, mas propriedade comum dos condôminos, porque parte indissociável de suas unidades autônomas, à semelhança do que se dá com as partes comuns de um edifício de apartamentos ou de um condomínio de lotes, substituído o espaço pelo tempo. Como coproprietários de frações ideais dessa janela temporal, os multiproprietários são titulares dos direitos e assumem as obrigações decorrentes da propriedade em comum (arts. 1.314 e ss.).  

No entanto, dispõe o Código Civil que referido intervalo pode ser atribuído, não só aos multiproprietários, mas, também, ao instituidor da multipropriedade imobiliária (art. 1.358-N, § 1º, inc. I).

Surge, então, a questão de saber, nessa última alternativa, qual a natureza do vínculo que se estabelece com o instituidor da multipropriedade, se de direito real de propriedade ou se de direito meramente obrigacional.

Parece-me que a solução é encontrada a partir do exame da função que esse intervalo deve exercer. E aí se observa que ele tem por único mister servir à funcionalidade do bem em regime de multipropriedade, sem qualquer possibilidade de uso, gozo ou fruição por parte do instituidor, que simplesmente o administra. Esse intervalo, efetivamente, só se justifica como meio de atender aos interesses do conjunto dos multiproprietários do imóvel. Portanto, não tem como ser considerado isoladamente, senão agregado às unidades autônomas de todos eles. Nem se pode conceber que haja uma matrícula dele no ofício de registro imobiliário como bem autônomo em si considerado, visto que não confere nenhum dos direitos inerentes à propriedade, apenas obrigações. De toda sorte, não pode ser objeto de relações jurídicas inerentes ao domínio (uso, gozo, disposição), porque totalmente adversas à sua função, isto é, à razão de sua existência.

Essa conclusão permite afirmar que, se o intervalo entre uma unidade autônoma de tempo e outra for atribuído ao instituidor da multipropriedade, os multiproprietários podem retirar-lhe esse múnus. E não há como ser diferente, visto que o interesse deles sobrepõe-se ao direito individual do instituidor. Sabendo-se que o ato de instituição da multipropriedade equivale à convenção que institui o condomínio edilício, caberia, no caso, a aplicação supletiva da regra contida no art. 1.351 do Código Civil, para, modificando-o por deliberação de condôminos que representem 2/3 da fração total de tempo das unidades autônomas, destituir o instituidor e prever a escolha do administrador por eleição dos multiproprietários. O mesmo raciocínio é válido para a multipropriedade em condomínio edilício, caso em que haverá necessidade de deliberação assemblear dos respectivos condôminos, observadas as condicionantes para tanto.

Pode acontecer que reparos sejam necessários fora desse intervalo. Nesse caso, eles “poderão ser feitos durante o período correspondente à fração de tempo de um dos multiproprietários” (art. 1.358-N, § 2º) e o multiproprietário, assim atingido, terá direito de ser indenizado pelo prejuízo sofrido pelo condomínio da multipropriedade (perda de parte ou de todo o tempo de uso mais eventuais despesas que guardem nexo causal com o fato).

7.    O ato de criação da multipropriedade

A multipropriedade imobiliária origina-se da manifestação unilateral de vontade do proprietário do imóvel, a qual pode ser concretizada por ato entre vivos ou por testamento, e se aperfeiçoa com a inscrição do respectivo instrumento no cartório de registro de imóveis da localidade onde estiver matriculado esse imóvel. É tal registro constitutivo da multipropriedade, visto que é esse novo instituto é uma nova modalidade de divisão do imóvel, o qual, a partir daí, fica subordinado a um regime jurídico peculiar, diverso daquele ao qual estava afetado.  

O legislador foi econômico ao prescrever o conteúdo desse ato, pois mencionou, apenas, que dele deve constar “a duração dos períodos correspondentes a cada fração de tempo” (CC, art. 1.358-F). O certo, porém, é que ele deve atender a todos os requisitos necessários para sua inscrição imobiliária. Essa inscrição provoca a abertura de matrículas separadas, uma para cada fração ou unidade de tempo autônoma, de modo que terão de ser informados os dados exigidos para a perfeita identificação de todas elas. É caso, por isso, de complementar o dispositivo mencionado com o art. 1.332 do mesmo Código para que o ato instituidor da multipropriedade contenha a discriminação e a individualização das unidades de propriedade exclusiva e das frações ideais das áreas comuns, com a indicação do fim a que são destinadas.

Em se tratando de testamento, parece existir uma contradição de termos. Sabendo-se que a multipropriedade só se considera instituída com o registro imobiliário do instrumento de sua criação – e essa ponderação estende-se ao preceito igual do condomínio edilício –, fica difícil entender como pode um testamento ter tal efeito, visto que ele só tem eficácia jurídica após a morte do testador e é suscetível de ser por ele modificado a qualquer tempo ao longo de toda sua vida. Ademais, testamento não se registra no ofício de registro de imóveis; com a abertura da sucessão, cabe ao testador dar cumprimento aos atos de última vontade do autor da herança e será de sua lavra o instrumento necessário para o registro imobiliário que originará a multipropriedade.

Já na hipótese de criação da multipropriedade por ato dito entre vivos, haverá negócio jurídico unilateral formado por uma declaração não receptícia de vontade, por não depender do assentimento de terceiros. Mesmo quando o imóvel pertence a mais de um proprietário, o ato criativo da multipropriedade continuará sendo um negócio jurídico unilateral, porém, coletivo.

Esse negócio jurídico, uma vez levado a registro, tem natureza constitutiva de direitos, visto que submete o imóvel sobre que versa a um novo regime jurídico, diverso daquele ao qual antes estava subordinado.

No tocante à forma, a escritura pública é de sua substância, pois necessária à vista da regra contida no art. 108 do Código Civil, pela impossibilidade material de versar sobre imóvel de valor inferior a trinta salários mínimos vigentes no País. Há decisões de nossos tribunais e algumas normas regulatórias das serventias extrajudiciais que permitem a criação de condomínios edilícios mediante escrito particular, mas o fato é que o Código Civil só abre essa alternativa quando se refere à convenção do condomínio edilício (art. 1.334, § 1º), aplicável supletivamente, como visto, à multipropriedade. Portanto, é recomendável observar o preceito geral que a impõe.

7.1. A convenção condominial

Além do ato de criação ou que institui a multipropriedade, é prevista uma convenção dos multiproprietários. A primeira é um ato exclusivo do instituidor e dispõe sobre a estrutura da multipropriedade; a outra é um ato coletivo subsequente, que advém de deliberação dos multiproprietários, destinado a regular a sua convivência quanto ao uso e gozo do imóvel que é objeto da multipropriedade. O primeiro pode já conter as disposições inerentes à convenção, caso em que esta torna-se dispensável.

Essa convenção pode revestir-se da forma de escritura pública ou particular (art. 1.334, § 1º), subscrita por condôminos que representem 2/3 ou mais da somatória dos tempos das unidades autônomas. O escrito particular pode consistir em uma ata de assembleia geral, regularmente convocada e instalada para tal fim. Seu conteúdo vem discriminado no art. 1.358-G, segundo o qual, na convenção devem ser inseridos:

“I – os poderes e deveres dos multiproprietários, especialmente em matéria de instalações, equipamentos e mobiliário do imóvel, de manutenção ordinária e extraordinária, de conservação e limpeza e de pagamento da contribuição condominial; 

II – o número máximo de pessoas que podem ocupar simultaneamente o imóvel no período correspondente a cada fração de tempo; 

III – as regras de acesso do administrador condominial ao imóvel para cumprimento do dever de manutenção, conservação e limpeza; 

IV – a criação de fundo de reserva para reposição e manutenção dos equipamentos, instalações e mobiliário; 

V – o regime aplicável em caso de perda ou destruição parcial ou total do imóvel, inclusive para efeitos de participação no risco ou no valor do seguro, da indenização ou da parte restante; 

VI – as multas aplicáveis ao multiproprietário nas hipóteses de descumprimento de deveres.” 

A essas disposições devem ser acrescentadas outras, também necessárias para o bom funcionamento do sistema, como as relativas ao modo de se realizar a assembleia geral, se ainda não prevista no instrumento de criação da multipropriedade, à obrigatoriedade de funcionamento de um conselho fiscal e consultivo, com detalhamento sobre sua formação, atuação etc.

Por último, é possível inserir na convenção as regras peculiares, livremente ajustáveis, a que estarão subordinadas as pessoas ocupantes do imóvel, impondo impedimentos ou assegurando direitos, com as particularidades que o caso recomendar.

7.2. O regimento interno

Não é prevista a elaboração de um regimento interno para a multipropriedade, pois não figura como requisito da convenção e, nas normas sobre multipropriedade, só há referência ao regimento interno do condomínio edilício, para nele estabelecer normas sobre a multipropriedade complexa ali instituída. (Ver arts. 1.358-Q, parágrafo único, e 1.358-R, § 4º).

No entanto, podem surgir situações não reguladas pela convenção, que precisam ser normatizadas. Desde que não integrem o conteúdo obrigatório discriminado no art. 1.358-G, podem ser objeto de tratamento em um regimento interno. Essa observação é importante porque para modificar a convenção, é necessário reunir votos que representem 2/3 das frações de tempo condominiais (art. 1.351, na redação que lhe deu a Lei 10.931/2004), ao passo que para um regimento interno, basta a maioria absoluta (art. 1351), salvo disposição diversa que puder haver na convenção.

8.    Direitos do multiproprietário

Como proprietário exclusivo de unidade autônoma de tempo do imóvel em de multipropriedade, o multiproprietário tem todos os direitos de domínio, sendo-lhe assegurado o de dela usargozar e dispor amplamente, sem obrigação de conferir preferência (art. 1.358-L), dentro dos limites da função que ela visa a preencher. Tais direitos vêm discriminados no art. 1.358-I, incs. I a III:

“I – usar e gozar, durante o período correspondente à sua fração de tempo, do imóvel e de suas instalações, equipamentos e mobiliário;

II – ceder a fração de tempo em locação ou comodato;

III – alienar a fração de tempo, por ato entre vivos ou por causa de morte, a título oneroso ou gratuito, ou onerá-la, devendo a alienação e a qualificação do sucessor, ou a oneração, ser informadas ao administrador.”

Ainda como proprietário exclusivo de sua unidade temporal, o multiproprietário tem o direito de reavê-la, pessoalmente no respectivo período, ou a qualquer tempo pela pessoa do administrador da multipropriedade, de quem injustamente a possua ou a detenha (arts. 1.228, 1.314 e 1.348, inc. II).

Já como coproprietário das partes comuns dessa multipropriedade, possui os direitos que lhe são assegurados pelo regime jurídico da copropriedade, ou seja, pelas disposições relativas ao condomínio voluntário (arts. 1.314 e ss.). Tais direitos são de duas ordens: individuais e coletivos.

São individuais e, portanto, exercidos sem a participação dos demais multiproprietários, os direitos de uso e gozo, tanto das instalações, como de todos os móveis e utensílios que guarnecem o imóvel durante sua unidade autônoma de tempo. Essa é uma diferença em relação aos direitos de copropriedade do condomínio edilício, os quais permite, ao condômino “usar das partes comuns, conforme a sua destinação, e contanto que não exclua a utilização dos demais compossuidores” (art. 1.335, inc. II).

É individual, ainda, o direito de o multiproprietário dispor da sua unidade autônoma, seja a título oneroso (v. g., compra e venda, permuta, aporte de capital em sociedade), seja a título gratuito (doação e renúncia). Essas operações independem de ciência ou anuência dos demais multiproprietários e, exceção feita à renúncia[6], caracterizam hipóteses de incidência de imposto de transmissão (ITBI ou ITCMD), como previsto, conforme o caso, na legislação municipal ou estadual. 

São coletivos os direitos que expressam a vontade do conjunto dos multiproprietários, reunidos, para tanto, em assembleia geral. O art. 1.358-I, inc. IV, contempla-os como direitos de participar e votar, pessoal ou por intermédio de representante, nas assembleias gerais da multipropriedade e, quando for o caso, nas do condomínio edilício, definindo o peso dos respectivos votos. Na multipropriedade simples, ele corresponderá “à quota de sua fração de tempo no imóvel” e na multipropriedade complexa, “à quota de sua fração de tempo em relação à quota de poder político atribuído à unidade autônoma na respectiva convenção de condomínio edilício.”

O exercício desses direitos coletivos é condicionado ao cumprimento das obrigações condominiais do multiproprietário, exigíveis até a data da realização da assembleia geral, como se dá, também, em relação ao exercício do direito de voto pelo proprietário de unidade autônoma do condomínio edilício (arts. 1.358-I, inc. IV e 1.335, inc. III).

9.    Obrigações do multiproprietário

O art. 1.358-J, além de admitir que outras possam ser estabelecidas no instrumento de instituição ou na convenção da multipropriedade, contém um rol extenso de obrigações do multiproprietário, a saber:

“I – pagar a contribuição condominial do condomínio em multipropriedade e, quando for o caso, do condomínio edilício, ainda que renuncie ao uso e gozo, total ou parcial, do imóvel, das áreas comuns ou das respectivas instalações, equipamentos e mobiliário; 

II – responder por danos causados ao imóvel, às instalações, aos equipamentos e ao mobiliário por si, por qualquer de seus acompanhantes, convidados ou prepostos ou por pessoas por ele autorizadas; 

III – comunicar imediatamente ao administrador os defeitos, avarias e vícios no imóvel dos quais tiver ciência durante a utilização; 

IV – não modificar, alterar ou substituir o mobiliário, os equipamentos e as instalações do imóvel; 

V – manter o imóvel em estado de conservação e limpeza condizente com os fins a que se destina e com a natureza da respectiva construção; 

VI – usar o imóvel, bem como suas instalações, equipamentos e mobiliário, conforme seu destino e natureza; 

VII – usar o imóvel exclusivamente durante o período correspondente à sua fração de tempo; 

VIII – desocupar o imóvel, impreterivelmente, até o dia e hora fixados no instrumento de instituição ou na convenção de condomínio em multipropriedade, sob pena de multa diária, conforme convencionado no instrumento pertinente; 

IX – permitir a realização de obras ou reparos urgentes.”   

Essas obrigações decorrem, logicamente, do compartilhamento do imóvel, de suas instalações, dos móveis e utensílios que o adornam. Visam a assegurar a harmonia entre os multiproprietários e a dar funcionalidade ao imóvel em regime de multipropriedade.

Afora essas obrigações, o ato de criação da multipropriedade ou sua convenção podem acrescentar outras, as mais variadas, atendendo aos interesses prevalecentes dos multiproprietários e às peculiaridades do caso concreto, como, por exemplo, não permitir o acesso de animais de porte, respeitar o silêncio após tantas horas etc.

10.  Penalidades

O descumprimento das obrigações do multiproprietário, seja pessoalmente, seja por quem esteja na posse ou detenção do imóvel no curso do período de sua unidade autônoma, tem de ser tratado com o máximo rigor, pois é suscetível de comprometer todo o sistema em que a multipropriedade se assenta. As sanções têm de estar previstas na convenção condominial (art. 1.358-G, inc. VI), observado o disposto no art. 1.358-J, § 1º, que prevê:

a) multa, no caso de inadimplir qualquer de suas obrigações;

b) multa progressiva e perda temporária do direito de utilização do imóvel no período correspondente à sua fração de tempo, no caso de descumprimento reiterado delas.  

A multa referente ao atraso no pagamento da contribuição condominial não pode ser superior a 2% (dois por cento) do respectivo valor (ar.1336, § 1º). Já em se tratando do não cumprimento das obrigações previstas nos incisos III a V do art. 1.358-J, a convenção deve fixar a multa até o limite de cinco vezes o valor da contribuição condominial a que estará sujeito o multiproprietário, afora as perdas e danos que sua conduta infracional possa ter causado aos demais condôminos (art. 1.336, § 2º).

A ampliação para o décuplo da contribuição mensal, desde que prevista na convenção, pode ocorrer, quando, por reiterado comportamento antissocial, o multiproprietário ou possuidor criar incompatibilidade de convivência com os demais condôminos ou possuidores (art. 1.337 e parágrafo único).

Em se tratando de multipropriedade em condomínio edilício, permite a lei, no caso de incumprimento das despesas ordinárias ou extraordinárias devidas em razão da multipropriedade, que seja adjudicada ao condomínio edilício a fração de tempo da unidade de seu titular (art. 1.358-S).

E, se o imóvel fizer parte de empreendimento em que haja sistema de locação de frações de templo por meio de administração única, repartindo entre si as receitas das locações independentemente da efetiva ocupação de cada unidade autônoma, poderá a convenção do condomínio edilício regrar que em caso de inadimplência,

“I – o inadimplente fique proibido de utilizar o imóvel até a integral quitação da dívida;

II – a fração de tempo do inadimplente passe a integrar o pool da administradora;

III – a administradora do sistema de locação fique automaticamente munida de poderes e obrigada a, por conta e ordem do inadimplente, utilizar a integralidade dos valores líquidos a que o inadimplente tiver direito para amortizar suas dívidas condominiais, seja do condomínio edilício, seja do condomínio em multipropriedade, até sua integral quitação, devendo eventual saldo ser imediatamente repassado ao multiproprietário.” (art. 1.358-S, parágrafo único).

Afora essas penalidades, o multiproprietário inadimplente fica com a obrigação de pagar o valor atualizado do débito e juros de mora pelo atraso no pagamento das obrigações líquidas, à razão de 1% (um por cento) ao mês, salvo ajuste diverso contido na convenção.

11.   Renúncia  

Nas regras gerais do condomínio a renúncia à parte ideal de qualquer dos condôminos é admitida como forma de o condômino inadimplente eximir-se de suas contribuições e demais dívidas que tenha para com o conjunto dos condôminos (art. 1.316), aos quais é assegurado o direito de acrescer pela repartição, entre si, do quinhão do renunciante (§ 2º), ou, se assumirem o débito, pelo rateio proporcional aos pagamentos que cada qual deles realizar (§ 1º).

Tratando do tema, o art. 1.358-T do Código Civil só previu a renúncia da multipropriedade em condomínio edilício e estatuiu que o multiproprietário “somente poderá renunciar de forma translativa a seu direito de multipropriedade em favor do condomínio edilício.” A norma é ininteligível. Primeiramente, renúncia é abdicação; renúncia translativa é doação, pois é abdicação em favor de outra pessoa; e,  em segundo lugar, afronta o direito de livremente dispor, inerente à propriedade e ao disposto no art. 1.358-I, que atribui ao multiproprietário o direito de alienar livremente sua unidade autônoma, “a título oneroso ou gratuito.”  Se pode alienar a título gratuito o bem de sua propriedade, como compreender a obrigatoriedade de renunciar sempre “em favor” do condomínio edilício? Ou seja, esse dispositivo parece-me totalmente sem sentido e, à toda evidência, inócuo, uma vez que, descortinando-se esse cenário, o multiproprietário, certamente, sempre terá direito de fazer uma doação a quem bem escolher.

Heresia maior, porém, está no parágrafo único do mesmo art. 1.358-T, que só permite a tal renúncia “se o multiproprietário estiver em dia com as contribuições condominiais com os tributos imobiliários e, se houver, com o foro ou a taxa de ocupação.” Ou seja, essa previsão retira até mesmo a possibilidade, acima lembrada, de o condômino demitir-se da condição de proprietário com a finalidade precípua de obter a quitação de suas dívidas, apesar de o art. 1.358-S prever do direito de o condomínio edilício adjudicar a fração de tempo da unidade de seu titular. É dizer, o multiproprietário não tem o direito de obter quitação de sua dívida mediante a abdicação da sua unidade autônoma, mas o condomínio edilício o possui para alcançar essa mesmíssima finalidade. Ou seja, se o multiproprietário não pode “renunciar em favor” do condomínio edilício para forrar-se do pagamento de sua dívida condominial, o destinatário pode agir no sentido de obtê-la. Trata-se de norma sem qualquer sentido prático, que dificilmente terá espaço para ser aplicada.

A conclusão que se tira dessas disposições é que só tumultuam a faculdade de o multiproprietário renunciar à sua propriedade, assegurada amplamente em relação a qualquer outro bem, móvel ou imóvel (art. 1.275 e parágrafo único).

12.   Extinção

O regime de multipropriedade pode ser extinto por ato voluntário. Para tanto, porém, é necessária a anuência de todos os multiproprietários, uma vez que o art. 1.358-D, ao estabelecer sua indivisibilidade, dispôs que ela não se sujeita à ação de divisão ou de extinção. Nessa regra não está – e nem poderia estar – a proibição de a multipropriedade ser extinta, mas previsão de não ser promovida sua extinção em caso de resistência de qualquer dos multiproprietários. Daí haver necessidade de estarem todos concordes.

A propriedade de todas as unidades autônomas de tempo nas mãos de um só não causa, por si, a extinção da multipropriedade. Ela continuará existindo enquanto não houver uma manifestação da vontade dele no sentido de extingui-la. Isso está expresso, aliás, no art. 1.358-C, parágrafo único.

A extinção voluntária só se dará mediante um distrato firmado por todos os multiproprietários (ou por aquele que for titular de todas as unidades autônomas) segundo as exigências previstas em lei para a transmissão do direito de propriedade. Portanto, é necessário que esse distrato se concretize por escritura pública firmada pelos titulares das unidades autônomas de tempo com a anuência dos respectivos cônjuges, quando for o caso (CC, arts. 108 e 1.647, inc. I).

Por último, a extinção pode ser involuntária quando se verificar a perda da propriedade pelas demais causas previstas no art. 1.275 do Código Civil (abandono, perecimento da coisa e desapropriação).

Em relação ao perecimento da coisa cumpre distinguir, obviamente, a perda da edificação (v. g., incêndio) da perda do próprio imóvel (v. g., alagamento permanente) porque só nesse último caso dá-se a extinção da multipropriedade; no primeiro, não há extinção porque permanece o estado de comunhão, a exigir um distrato que ponha fim às matrículas das unidades de tempo, sabendo-se que é possível a restauração do status quo ante mediante deliberação assemblear aprovada por multiproprietários que representem a soma da maioria da medida de tempo de todas as unidades autônomas (art. 1.357).

Extinta a multipropriedade, serão canceladas as matrículas das unidades autônomas de tempo e restaurada a matrícula anterior do imóvel ou aberta nova matrícula, em qualquer dos casos com a indispensável menção às matrículas canceladas porque delas ela se originou. Nos casos de distrato para retorno do imóvel ao estado anterior à instituição da multipropriedade, os multiproprietários passam a conviver no imóvel sob o regime do condomínio geral, regulado pelos arts. 1.314 a 1.330 do Código Civil.


[1] REsp n. 1.546.165, rel. p/ acórdão Min. JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, j. 24.6.2016.

[2]  A Multipropriedade Imobiliária. São Paulo: Saraiva, 1993. v. 1.

[3] SILVA PEREIRA, Caio Mário. Instituições de direito civil – Direitos reais. 24ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, n. 319, p. 167.

[4] As administradoras de condomínio, que costumam ser contratadas pelos condomínios edilícios, têm atribuições meramente executivas e de apoio ao trabalho do síndico, sem poderes de decisão.

[5] Essa lei teria sido, a meu ver, integralmente revogada na parte referente ao condomínio, pelo fato de o Código Civil ter tratado da matéria por inteiro (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, art. 2º, § 1º).  No entanto, é invocada expressamente por lei posterior (Lei 13.777/2018), para reger, de forma supletiva e subsidiária, a multipropriedade (CC, art. 1.358-B).

[6] Ver nº 11 infra.

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