Por Mariana Hofmann Fuckner
Há muito tempo a jurisprudência consolidou-se no sentido de reconhecer a competência privativa da assembleia geral da sociedade anônima para tomar as contas da administração, vedando o ajuizamento, pelo acionista, de pretensão individual de prestação de contas.[1] O fundamento desse entendimento encontra-se no art. 122, inciso III, da Lei das S/A, que prevê a competência privativa da assembleia geral de acionistas para tomar, anualmente, as contas dos administradores e deliberar sobre as demonstrações financeiras por eles apresentadas.[2]
No que tange às sociedades limitadas, não obstante o Código Civil contenha previsão semelhante – que atribui à assembleia ou reunião de sócios a competência (também privativa, cf. art. 1.071, inciso I, do Código)[3] de tomar as contas dos administradores e deliberar sobre o balanço patrimonial e o de resultado econômico (art. 1.078, inciso I, do Código Civil)[4] –, aceita-se o ajuizamento de ações de exigir contas, individualmente pelos sócios, em desfavor dos administradores, com amparo no procedimento previsto no art. 550 e seguintes do CPC.
Para justificar essa autorização, normalmente faz-se referência ao art. 1.021 do Código Civil, aplicável às sociedades limitadas, e que dispõe que, na ausência de estipulação que determine época própria, o sócio pode examinar os livros e documentos e o estado de caixa e de carteira da sociedade a qualquer tempo.[5]
Dois são os principais entraves a essa interpretação, que não esbarram, em princípio, na ampla liberdade de fiscalização concedida aos sócios no escopo das sociedades limitadas.[6]
O primeiro consiste exatamente na competência privativa da assembleia geral das sociedades limitadas para a tomada de contas da sua administração, locus específico no qual devem ser realizadas as deliberações dessa natureza.
Ademais, os sócios contam com prerrogativas aptas a salvaguardar seu direito de ver realizada a assembleia ou reunião (à semelhança do que ocorre na sociedade anônima). [7] A Lei estabelece que, via de regra, a convocação da assembleia ou reunião de sócios deve ser feita pela administração (art. 1.072 do Código Civil).[8] No entanto, o sócio, independentemente da participação societária, tem o direito de convoca-la na hipótese de os administradores retardarem a convocação por mais de sessenta dias; e os titulares de mais de um quinto do capital social podem também realizar a convocação se não atendido, pela administração, em oito dias, pedido fundamentado de convocação (art. 1.073, inciso I).[9] A inexistência de quórum de instalação da assembleia em segunda convocação também reforça o direito dos sócios à realização da deliberação (art. 1.074).[10]
Apesar de ser entendimento minoritário, a impossibilidade de a ação de prestação de contas funcionar como substitutiva da deliberação assemblear voltada a tomar as contas da administração foi recentemente afirmada pelo E. TJSP:
Como bem observou o MM. Juiz “a quo”, “não se pode confundir essas contas com aquelas dispostas no art. 1.065 do CC para as sociedades limitadas [“Ao término de cada exercício social, proceder-se-á à elaboração do inventário, do balanço patrimonial e do balanço de resultado econômico”], já que as últimas devem ser analisadas em reunião ou assembleia ordinária de sócios, tendo inclusive os minoritários ferramentas legais para sua convocação na omissão dos administradores, pena de se transformar a ação judicial de exigir contas em substitutivo do conclave”. Dessarte, a ação de exigir contas não pode se configurar como substitutiva da reunião ou assembleia ordinária de sócios para aprovação anual das contas ou como instrumento para revisão dos atos de administração e imputação de responsabilidade ao administrador, ou ainda, como exibição de documentos. […]. (TJSP; Apelação Cível 1124722-85.2020.8.26.0100; Relator (a): J. B. Franco de Godoi; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Central Cível – 1ª VARA EMPRESARIAL E CONFLITOS DE ARBITRAGEM; Data do Julgamento: 18/05/2022; Data de Registro: 19/05/2022).
O segundo entrave é a diferença entre o conceito de “contas” no direito societário e o objeto da ação de exigir “contas” do CPC.
As contas da administração, a que fazem referência os arts. 1.071, I, e 1.078, I, do Código Civil são conceituadas como as “demonstrações genéricas do estado ou da situação das operações realizadas na administração da companhia, dedutíveis da interpretação conjugada dos resultados das demonstrações financeiras, e dos esclarecimentos postos à consideração dos acionistas por meio dos relatórios dos órgãos da administração. Com base esses elementos, os acionistas julgarão as contas dos administradores, isto é, a gestão social por eles empreendida”.[11]
Por outro lado, no CPC, o conceito de contas, cuja exigência pode se dar em juízo, contempla débitos, créditos e investimentos decorrentes de relações jurídicas específicas que tenham por objeto o patrimônio (social, no caso de sociedade).[12]–[13]
Como consequência, evidencia-se (i) a inadequação do procedimento de exigir contas para a análise das contas da administração (para além de não ser o foro específico a essa finalidade); e (ii) a necessidade de o pleiteante da ação de exigir contas delimitar e especificar qual(is) a(s) relação(ões) jurídica(s) específica(s) referente(s) ao patrimônio (social) pretende acessar por meio da demanda judicial, não se podendo admitir a realização de pedido genérico.[14]
Nesse contexto, a gestão do patrimônio social pelo administrador até pode ser objeto de ação de exigir contas, ajuizada individualmente pelo sócio, desde que tenha como objetivo o esclarecimento patrimonial de relações jurídicas especificas atinentes à gestão social – e não, como visto, a tomada ampla das contas da administração.
[1] Entre outros: TJSP; Apelação Cível 1002498-10.2019.8.26.0318; Relator (a): Mary Grün; Órgão Julgador: 7ª Câmara de Direito Privado; Foro de Leme – 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 16/11/2020; Data de Registro: 16/11/2020; TJPR – 16ª Câmara Cível – AC – Umuarama – Rel.: DESEMBARGADORA ASTRID MARANHÃO DE CARVALHO RUTHES – Un�nime – J. 09.07.2014.
[2] Art. 122. Compete privativamente à assembleia geral: III – tomar, anualmente, as contas dos administradores e deliberar sobre as demonstrações financeiras por eles apresentadas; […].
[3] Art. 1.071. Dependem da deliberação dos sócios, além de outras matérias indicadas na lei ou no contrato: I – a aprovação das contas da administração; […].
[4] Art. 1.078. A assembléia dos sócios deve realizar-se ao menos uma vez por ano, nos quatro meses seguintes à ao término do exercício social, com o objetivo de: I – tomar as contas dos administradores e deliberar sobre o balanço patrimonial e o de resultado econômico; […].
[5] Art. 1.021. Salvo estipulação que determine época própria, o sócio pode, a qualquer tempo, examinar os livros e documentos, e o estado da caixa e da carteira da sociedade
[6] GONÇAVES NETO, Alfredo de Assis. Direito de empresa: comentários aos artigos 966 a 1.195 do Código Civil. 9ª ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 274.
[7] Art. 123, parágrafo único, alíneas “b” e “c”, da LSA: A assembléia-geral pode também ser convocada: b) por qualquer acionista, quando os administradores retardarem, por mais de 60 (sessenta) dias, convocação nos casos previstos em lei ou no estatuto; c) por acionistas que representem cinco por cento, no mínimo, do capital social, quando os administradores não atenderem, no prazo de oito dias, a pedido de convocação que apresentarem, devidamente fundamentado, com indicação das matérias a serem tratadas.
[8] Art. 1.072. As deliberações dos sócios, obedecido o disposto no art. 1.010, serão tomadas em reunião ou em assembléia, conforme previsto no contrato social, devendo ser convocadas pelos administradores nos casos previstos em lei ou no contrato.
[9] Art. 1.073. A reunião ou a assembléia podem também ser convocadas: I – por sócio, quando os administradores retardarem a convocação, por mais de sessenta dias, nos casos previstos em lei ou no contrato, ou por titulares de mais de um quinto do capital, quando não atendido, no prazo de oito dias, pedido de convocação fundamentado, com indicação das matérias a serem tratadas.
[10] Art. 1.074. A assembléia dos sócios instala-se com a presença, em primeira convocação, de titulares de no mínimo três quartos do capital social, e, em segunda, com qualquer número.
[11] ADAMEK, Marcelo Vieira von. Responsabilidade civil dos administradores de S/A e ações correlatas. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 259.
[12] Art. 551, § 2º, do CPC: As contas do autor, para os fins do art. 550, § 5º, serão apresentadas na forma adequada, já instruídas com os documentos justificativos, especificando-se as receitas, a aplicação das despesas e os investimentos, se houver, bem como o respectivo saldo.
[13] BEDENDI, Luis Felipe. Ação de exigir contas e as sociedades limitadas. In: YARSHELL, Flávio Luiz. PEREIRA, Guilherme Setoguti J. (Coords.). Processo societário IV. São Paulo: Quartier Latin, 2021, p. 847.
[14] TJPR – 18ª Câmara Cível – 0015878-46.2021.8.16.0021 – Cascavel – Rel.: SUBSTITUTA LUCIANEBORTOLETO – J. 17.04.2023.