Por Alfredo de Assis Gonçalves Neto
As sociedades de economia mista, desde sua origem, que se deu com as companhias colonizadoras do Século XVII, têm por fim reunir capital público e privado para desenvolver atividades de primordial interesse do Estado. Constituem-se, pois, para realizar a descentralização da administração pública na prestação de serviços que lhe são próprios ou para desbravar áreas do domínio econômico que não contam com a iniciativa privada ou cuja exploração não anima os particulares. No primeiro caso pode ser citado um exemplo caseiro, a URBS – URBANIZAÇÃO DE CURITIBA S. A., voltada para realizar o planejamento urbano de Curitiba; e, no segundo, a EMBRAER S. A., criada para promover o desenvolvimento da indústria aeronáutica brasileira (hoje privatizada).
A questão relativa a uma sociedade de economia mista sujeitar-se ou não ao regime falimentar, na eventualidade de se tornar insolvente, não despertou a atenção dos juristas, senão a partir do advento da vigente Lei do Anonimato, datada do ano de 1976.
Antes não se discutia a respeito. As sociedades de economia mista e, bem assim, as empresas públicas, em sua grande maioria, eram deficitárias e o ente público controlador sempre arcava com os prejuízos financeiros que elas apresentassem, por considerá-las uma extensão das atribuições estatais. Afinal, seu tratamento estava contido no Decreto-lei n. 200/1967, que dispunha sobre a organização da administração pública federal, na qual referidas sociedades estavam inseridas, como órgãos da administração indireta, “vinculadas ao Ministério em cuja área de competência estiver enquadrada sua principal atividade” (art. 4º, inc. II, letra “c”, e § 1º).
A polêmica quanto a se submeter a sociedade de economia mista ao regime jurídico das empresas privadas, em obediência ao preceito constitucional que assim já determinava, foi suscitada num congresso de direito administrativo realizado no Rio de Janeiro, na década de 1980. Na ocasião, questionou-se a constitucionalidade do artigo 242 da Lei 6.404/1976, que estatuía:
“As companhias de economia mista não estão sujeitas a falência, mas os seus bens são penhoráveis e executáveis, e a pessoa jurídica que a controla responde, subsidiariamente, pelas suas obrigações.”
O fundamento dessa tese não era a questão falimentar, mas a parte final desse dispositivo, que impunha a responsabilidade da entidade controladora pela situação deficitária de sua criatura, visto que nenhum acionista de sociedade anônima privada respondia pelas obrigações da companhia, mesmo quando no exercício de seu controle acionário. Assim, o regime jurídico privado, previsto na então vigente Constituição Federal de 1969, não permitiria a responsabilização subsidiária do Estado, como acionista controlador da sociedade de economia mista. A discussão perdeu força diante do alerta de existir a sociedade em comandita por ações, na qual o acionista comanditado responde subsidiária e ilimitadamente pelas obrigações sociais.
Portanto, a não submissão da sociedade de economia mista ao regime falimentar não era, à época, o centro das preocupações dos administrativistas, mas a responsabilização do Estado pelas obrigações que ela assumia, ocorrendo sua insolvência.
O fato é que a pessoa jurídica controladora da sociedade de economia mista prosseguiu respondendo por sua solvabilidade, na linha do entendimento de ser o Estado responsável pela tutela do interesse público que, por meio dela, estava a tutelar. E isso acontecia mediante “operações de salvamento”, realizadas com aportes em dinheiro, prestação de garantias, empréstimos, aumentos de capital etc.
Mesmo assim, algum desavisado de plantão inseriu, na minirreforma da Lei 6.404/1976 (operada pela Lei 10.303/2001), a revogação do seu artigo 242. Como a Lei de Falências então vigente (Dec.-lei 7.661/1945) não continha regra excluindo as empresas paraestatais de sua aplicação, era de se imaginar que ela poderia passar a ser aplicada às sociedades de economia mista, exceção feita àquelas constituídas para realizar a descentralização administrativa do Estado[1]. Registrei esse fato quando escrevi as Lições de Direito Societário – Sociedade Anônima:
“Assim, deixou de existir a responsabilidade subsidiária da controladora (para com as dívidas contraídas pela controlada após a vigência dessa lei), mas a questão relativa à falência pode trazer polêmica, já que fará ressurgir a antiga tese de a falência não ser compatível com a sociedade de economia mista criada para servir de instrumento de descentralização administrativa do Estado, apenas atingindo aquelas destinadas ao exercício de atividade econômica, em caráter suplementar à iniciativa privada.”[2]
Reintroduzida em nosso ordenamento a vedação de falir para as empresas públicas e sociedades de economia mista, esboça-se a nova versão de inconstitucionalidade, atualmente sob o argumento de o artigo 2º, inciso I, da Lei 11.101/2005, ao excluir a sociedade de economia mista e a empresa pública do regime falimentar, contrariar o preceito constitucional que determina sua submissão ao mesmo tratamento das empresas privadas (CF, art. 173, § 1º, inc. II). É, aliás, o que está em debate no Supremo Tribunal Federal sob regime repercussão geral – “Aplicação do regime de falência e recuperação judicial, previsto na Lei n. 11.101/05, às empresas estatais” (RE n. 1.249.945/MG – Tema 1.101-STF, Relator o Min. Roberto Barroso).
Não me parece, porém, que essa tese possa vingar, a começar pela análise do preceito constitucional invocado, segundo o qual,
“[A] lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre: (…) II – a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários.”
Leitura atenta dessa disposição revela que a determinação constitucional não é para que a lei imponha, porém disponha sobre a sujeição das empresas estatais ao regime jurídico das empresas privadas. Por isso, o enunciado não deve ser compreendido no sentido de comandar a adoção integral de tal regime, até porque a própria Constituição prescreve tratamento especial e diferenciado para elas ao exigir licitação e outras providências que, no que se refere aos agentes que atuam no mercado, mostra-se inconcebível. Aliás, o próprio Estatuto das Empresas Paraestatais (Lei 13.303/2016) contém outras regras que tolhem grandemente a agilidade de que necessitam os agentes econômicos para atuar num ambiente em que a regra é a liberdade de competição.
Verifica-se nessa mesma disposição constitucional que só a sociedade de economia mista, que explore atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de exploração de serviços, é que deve observar o regime das empresas privadas; logo, dele estão excluídas as constituídas para descentralizar atividades inerentes às atribuições próprias da administração pública.
Outro ponto a considerar é que o termo “empresas privadas” tem um sentido que não corresponde a conceito algum de direito privado. Do ponto de vista do direito comercial ou empresarial, empresa é atividade exercida por empresários ou por sociedades empresárias. Já na Constituição Federal o vocábulo figura em diversas passagens com um sentido lato para designar os sujeitos de direito que desenvolvem qualquer atividade econômica, empresária ou não empresária.[3] Nessa compreensão, isto é, como sujeitos de direito que desenvolvem atividades econômicas, enquadram-se no conceito de empresas privadas, portanto, não só os empresários e as sociedades empresárias, mas todos os agentes que a exercem de forma organizada.
Ora, as sociedades simples, que têm por objeto a prática de atividades rurais ou intelectuais, e as pessoas naturais, que exercem atividade econômica não empresária, inserem-se no conceito constitucional de empresas privadas, mas estão fora do regime jurídico traçado pela Lei 11.101/2005; assiste-lhes a insolvência civil, regulada pelo Código de Processo Civil de 1973 (arts. 748 e ss), nessa parte ainda em vigor, para solucionar sua situação deficitária. No entanto, essa mesma sociedade simples, se adotar o tipo de sociedade anônima, não mais se submeterá à insolvência civil, mas à falência e poderá fazer uso da recuperação judicial ou extrajudicial para evitá-la. É o que basta para evidenciar que o regime falimentar não integra inexoravelmente o arcabouço jurídico das empresas privadas.
Sob outro ângulo, mesmo que fosse possível abandonar o conceito conferido pela Constituição Federal à empresa privada para restringi-lo àquela que “exerce atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou de serviços” – exceto se empresa rural ou de profissão intelectual (CC, arts. 966, parágrafo único, e 971) –, outra não seria a conclusão. Efetivamente, o sistema recuperacional e falimentar não se aplica a todas elas: as sociedades cooperativas, as instituições financeiras, as companhias de seguro, de câmbio e corretagem e as empresas que exploram planos de saúde, por exemplo, sujeitam-se a regimes diferenciados de insolvência, pelas particularidades que apresentam.
Para as cooperativas havia, mas não foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988, a liquidação administrativa extrajudicial. Sua extinção provocou um vácuo legislativo que, até o presente momento, carece de regular normatização, dado o improfícuo, mas ainda vigente, sistema da insolvência civil acima referido, no qual a solução é, essencialmente, liquidatária[4].
Já as outras entidades aqui mencionadas não têm como buscar a recuperação em nenhuma das duas modalidades previstas na Lei 11.101/2005. Para seu saneamento econômico estão previstas a intervenção administrativa e a liquidação administrativa, ambas extrajudiciais; podem submeter-se à falência, mas só após a tentativa frustrada de seu restabelecimento financeiro por meio dessas figuras, destinadas à tutela de um interesse superior (saúde, segurança, repercussão econômica etc.), que transcende os das partes envolvidas.
A existência de diferentes modos de tratar a insolvência de “empresas privadas”, qualquer que seja o significado que se lhes dê, é o bastante para afastar a ideia de que a vigente Lei Falimentar é-lhes inerente. Referida lei nada mais faz do que traçar um regime jurídico que o legislador, acertadamente ou não, considerou adequado para algumas, mas não para todas as ditas empresas privadas.
De resto, mesmo que se substituísse a referência a empresas privadas no preceito constitucional por “sociedade anônima”, por ser esse o tipo legal de que se revestem as sociedades de economia mista (Lei 13.303/2016, art. 4º), o mesmo exemplo das instituições financeiras e das companhias seguradoras – que, por força de lei, devem também segui-lo (Lei 4.595/1964, art. 25; Dec.-lei 73/1966, art. 24) –, estaria a comprovar que não é da essência da sociedade anônima insolvente ter acesso à recuperação, em qualquer de suas versões, para evitar sua quebra.
Por conseguinte, a norma que exclui a sociedade de economia mista e, bem assim, a empresa pública, do regime jurídico da insolvência previsto na Lei 11.101/2005 – ou, se se preferir, do benefício de recuperação judicial ou extrajudicial previsto nessa lei –, não agride minimamente a Constituição Federal, visto que nem todas as empresas privadas, nem todos os empresários e nem todas as sociedades anônimas subsomem-se às disposições nela estabelecidas.
Antes de concluir, devo dizer que, sob minha ótica, a questão relativa a esse tema não é a de saber se a sociedade de economia mista “pode ou não gozar do benefício da recuperação judicial ou extrajudicial de que trata a Lei Falimentar”, mas se “pode ou não ser submetida ao regime falimentar.” Sim, esse é o dilema, porque qualquer dessas recuperações integra um só e mesmo sistema, que supõe a falência e está regulada com a finalidade única de (tentar) evitá-la.
Isso assentado, pode-se especular sobre a conveniência ou não da adoção do regime falimentar para resolver a crise de uma sociedade de economia mista que explora uma atividade econômica. Ou melhor, de legge ferenda, é caso de perguntar: deve-se estender a falência à sociedade de economia mista com esse objeto, sabendo-se que sua criação “só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo” (CF, art. 173, caput)?
Primeiramente, é preciso destacar que a recuperação, assim judicial, como extrajudicial, não tem por escopo obter de uma moratória ou remissória de dívidas, mas evitar que a empresa em crise tenha sua falência decretada; a dilação e a remissão do pagamento de dívidas são simples meios pelos quais a recuperação se viabiliza.
Em segundo lugar, a lei brasileira, ao regular a recuperação como medida preventiva da falência, condicionou sua admissão à anuência dos credores. Não temos mais entre nós a concordata forçada, como também não é admitida a recuperação suspensiva de uma falência em curso – o que é o bastante para se pensar que, uma vez tentada, seu êxito fica na dependência de aprovação de seu plano de recuperação pelas três classes de credores. Destaco, a propósito e à guisa de exemplo, que a assembleia geral dos credores, além do poder de aprovação ou rejeição do plano de recuperação judicial apresentado pela empresa devedora, tem permissão para modificá-lo, inclusive para determinar a alienação de bens não prevista no referido plano e, ainda, para escolher o gestor judicial, quando forem afastados os administradores da recuperanda (Lei 11.101/2005, art. 35, inc. I, letras “a”, “e” e “g”; art. 65 e §§). E não é só, pois os credores podem elaborar e aprovar um outro plano, se não for elaborado ou tiver sido rejeitado o da devedora e não lhes interessar a falência (arts. 6º, § 4º-A, e 56, §§ 4º e ss.).
Não aceita ou descumprida a recuperação judicial ou extrajudicial, a sociedade de economia mista irá inexoravelmente à falência, cuja finalidade, nos termos do art. 75, § 2º, da respectiva lei,
“é mecanismo de preservação de benefícios econômicos e sociais decorrentes da atividade empresarial, por meio da liquidação imediata do devedor e da rápida realocação útil de ativos na economia”.
Pois bem. É possível pensar em uma sociedade de economia mista mergulhada nesse cipoal de restrições, no qual o Estado controlador (a) perde o comando e deixa o empreendimento nas mãos de terceiros que não pode escolher, correndo o risco de ver eleito um gestor judicial sem sua participação na escolha; (b) fica impossibilitado de impedir alienação de bens essenciais à atividade; e (c) sujeita-se a manobras hostis, suscetíveis de ser tramadas para eliminar a concorrência ou para permitir a assunção da atividade econômica por uma entidade privada que não busca o interesse coletivo nem tem por função zelar pela segurança nacional? E, se a sociedade de economia mista for à falência, na qual o administrador judicial passa a gerenciar a massa falida e a buscar comprador imediato para o acervo social, como ficará a tutela dos interesses estatais que, por meio dela, o controlador pretendeu realizar?
Se a questão da insolvência da sociedade de economia mista não será bem resolvida pela falência – rectius, pela recuperação judicial ou extrajudicial preventivas de sua falência, é preciso buscar a solução em outro cenário. Talvez seja caso de restaurar a norma do artigo 242 da Lei das Companhias ou de implantar o regime jurídico da intervenção e liquidação administrativas, ou, ainda, de um regime jurídico especial de insolvência que permita garantir adequadamente os fins que levaram o Estado à sua criação. Para tanto, é preciso tirar o legislador de sua inércia.
Não serve olhar para países como os EUA, onde até cidades caem em falência. É necessário examinar a realidade brasileira, não só por conta de aqui haver uma legislação incompatível com os propósitos de criação das entidades paraestatais, como porque nosso sistema é totalmente distinto. Quando menos, seria possível voltar a atenção para o sistema europeu-continental e ter presente que a orientação lá adotada está consagrada na Diretiva UE 2019/1.023, do Parlamento Europeu, que, ao dispor sobre a uniformização do regime de insolvência nos países integrantes da União Europeia, dela excluiu, nomeadamente, “os organismos públicos nos termos do direito nacional” (art. 2, letra “h”), sob a justificativa de deverem “estar sujeitos a um regime especial, dispondo as autoridades nacionais de supervisão e resolução de extensos poderes de intervenção em relação a esses devedores” (consideranda, ns. 19 e 20).
É possível, também, deixar tudo como está, pois, havendo interesse coletivo ou razões de segurança nacional, o Estado controlador continuará suprindo as necessidades de caixa das sociedades de economia mista, das empresas públicas e, de modo geral, das entidades paraestatais. Se elas forem por ele abandonadas, deverão ser extintas, prestando-se, para tanto, o regime jurídico da insolvência civil mais acima mencionado.
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O presente texto também será publicado na revista da Associação dos Procuradores do Estado do Paraná.
[1] A criação de empresa pública ou sociedade de economia mista para exploração de uma atividade econômica, como se sabe, só se pode dar em caráter excepcional.
[2] (São Paulo: Ed. Juarez de Oliveira, 2005, n. 10, p. 26-27.) Essas mesmas considerações estão reproduzidas no Manual das Companhias ou Sociedades Anônimas (3ª. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, n. 12), onde acrescentei que “[A] questão relativa à sujeição da sociedade de economia mista à falência, que podia trazer polêmica, ficou igualmente superada com o advento da Lei 11.101/2005, que regulou a Falência e a Recuperação de Empresas, excluindo-as de sua aplicação (art. 2, I).”
[3] É o que se extrai dos arts. 7º, inc. XI (participação dos empregados nos lucros e na gestão da empresa); 11 (empresas com mais de 200 empregados); 54, II (empresa que goze de favor decorrente de contrato com pessoa jurídica de direito público); 212, § 5º (contribuição social do salário-educação recolhidas por empresas); 219, parágrafo único (fortalecimento da inovação nas empresas); 218, § 4º, e 219, parágrafo único (apoio a empresas que invistam em pesquisas, criação de tecnologia e inovação); 222 (empresas jornalísticas e de radiodifusão), 239, § 4º (financiamento do seguro-desemprego com contribuição adicional de empresa com índice de rotatividade da força de trabalho) etc.
[4] A respeito, ver, do autor, O Regime jurídico da insolvência. In: Revista do Instituto dos Advogados do Paraná. Curitiba, v. 19, p. 25-39, 1992.