por Marina Luiza Wypych Gehlen
Para aumentar a arrecadação da previdência social, a Receita Federal vem lavrando autos de infrações por todo o País, nos quais, desconsiderando contratos existentes, requalifica a relação jurídica entre médicos (ou sociedades de médicos) e hospitais para destes exigir o pagamento de contribuição previdenciária, como aqueles fossem, na realidade, seus empregados. O fundamento é que a finalidade dos contratos existentes entre médico (ou com a sociedade) e hospital seria exclusivamente a de fraudar as leis tributárias e trabalhistas.
Esses autos de infração são motivados por apreciações subjetivas dos agentes fiscais, desprovidas de provas e de estofo técnico, dando conta que, nesses casos, estariam presentes os requisitos próprios do contrato de trabalho: (i) pessoalidade; (ii) onerosidade; (iii) não eventualidade e (v) subordinação. Para eles, ademais, não tem importância o fato de não existir insurgência, mas concordância dos médicos com os termos do contrato.
Para piorar ainda mais o quadro, a despeito da clara incompetência (formal e material) da Receita Federal para reconhecer vínculo trabalhista, o Conselho Administrativo Fiscal (CARF) está flertando com o reconhecimento dessa prática, por meio de decisões que, mantendo a autuação, condena os hospitais ao pagamento da contribuição previdenciária e sugere a responsabilização criminal dos seus representantes por apropriação indébita previdenciária (art. 168-A do Código Penal).
Essas decisões do CARF sustentam que a competência para esse reconhecimento pela Receita Federal decorre da sua atribuição de “… planejar, executar, acompanhar e avaliar as atividades relativa a tributação, fiscalização, arrecadação, cobrança e recolhimento das contribuições sociais…” (art. 2º da Lei 11.457/2007).
Sobre o tema, vale lembrar que, originalmente, a Lei nº. 11.457/2007, que criou a “Super Receita”, atribuindo à Receita Federal a competência para a cobrança das contribuições previstas na Lei nº. 8.212/1991, previa a alteração do § 4º, do art. 6, da Lei nº. 10.593/2002, modulando a atuação dos auditores fiscais nos seguintes termos:
§ 4º No exercício das atribuições da autoridade fiscal de que trata esta Lei, a desconsideração da pessoa, ato ou negócio jurídico que implique reconhecimento de relação de trabalho, com ou sem vínculo empregatício, deverá sempre ser precedida de decisão judicial.
Contudo, essa alteração foi vetada sob o fundamento de que as “… legislações tributária e previdenciária, para incidirem sobre o fato gerador cominado em lei, independem da existência de relação de trabalho entre o tomador do serviço e o prestador do serviço. Condicionar a ocorrência do fato gerador à existência de decisão judicial não atende ao princípio constitucional da separação dos Poderes”.
É certo que a mensagem do veto não atribuiu à Receita Federal a competência para reconhecer qualquer vínculo trabalhista. Na realidade, ela apenas sustenta que não poderia o Poder Executivo ser impedido de reconhecer pelo seu órgão competente – e aqui lê-se Ministério do Trabalho (ou órgão equivalente) – a relação de emprego em situações nas quais ela contivesse formalmente outro rótulo. Nada mais. O veto a tal dispositivo não representou uma autorização genérica para que agentes fiscais travistam-se de autoridades trabalhistas.
Ademais, nesses casos, o Fisco esquece de um aspecto central de toda a discussão: o ordenamento jurídico autoriza a constituição de sociedade simples com o objetivo de prestar serviços médicos. E, assim, na condição de sujeitos de direito, não há impedimento para que celebrem contratos, inclusive para prestar serviços a hospitais.
O Código Civil, em seu o art. 966, parágrafo único, autoriza as pessoas que “…exerce[m] profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística…” à margem do conceito de empresário a reunirem-se em sociedades simples, ainda que adotando formato empresarial (CC, art. 983), para o exercício de suas atividades (“…que tem por objeto o exercício de atividade própria de empresário sujeito a registro; e, simples, as demais”; CC, art. 982).
As contratações de sociedades que prestam serviços estão protegidas de qualquer especulação quanto à qualidade do vínculo mantido com o profissional responsável pela atividade. O art. 129 da Lei nº. 11.196/2005 consigna expressamente que, em caso tais, não se aplicam as regras da CLT ou quaisquer outras, senão aquelas próprias da legislação societária, ressalvando-se apenas as hipóteses de desvio de finalidade e confusão patrimonial.
Nesse sentido:
Art. 129. Para fins fiscais e previdenciários, a prestação de serviços intelectuais, inclusive os de natureza científica, artística ou cultural, em caráter personalíssimo ou não, com ou sem a designação de quaisquer obrigações a sócios ou empregados da sociedade prestadora de serviços, quando por esta realizada, se sujeita tão-somente à legislação aplicável às pessoas jurídicas, sem prejuízo da observância do disposto no art. 50 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil. (grifos nossos)
Ou seja, na prestação de serviços médicos por meio de sociedades de profissionais as normas da CLT são inaplicáveis. A elas incidem, nos termos da legislação acima transcrita, apenas as regras contidas no art. 966 e 982 do Código Civil, com especial ênfase para aquelas que orientam as sociedades simples.
Anote-se, ainda, que a constituição de sociedades que prestam serviços médicos não retira o caráter pessoal do exercício da medicina, que continua sendo exercida por profissionais habilitados a tanto. É o médico quem auscultará o paciente, prescreverá os medicamentos ou realizará cirurgias ou outros procedimentos. No entanto, a lei autoriza que ele o faça por meio de um veículo jurídico destinado a organizar administrativamente sua atividade, a definir a alocação de seus sócios – ou terceiros que venha a contratar – na execução do seu objeto, a cobrar honorários e, ao final, nos termos do contrato social, a distribuir os resultados.
Inclusive, em julgado do Egrégio Superior Tribunal de Justiça, em que discutia a responsabilização de médico por suposto dano moral, material e estético, a possibilidade e a recorrência de contratações entre pessoas jurídicas, ficou bastante evidente:
RECURSOS ESPECIAIS. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. DANOS ORAIS, MATERIAIS E ESTÉTICOS. RESPONSABILIDADE CIVIL. HOSPITAL. COMPLICAÇÕES DECORRENTES DE ANESTESIA GERAL. PACIENTE EM ESTADO VEGETATIVO. (…) 3. O cadastro que os hospitais normalmente mantêm de médicos que utilizam suas instalações para a realização de cirurgias não é suficiente para caracterizar relação de subordinação entre médico e hospital. Na verdade, tal procedimento representa um mínimo de organização empresarial. O conceito de preposto não se amolda a um simples cadastro, vai bem além, pois pressupõe que uma pessoa desenvolva atividade no interesse de outra, sob suas instruções, havendo, portanto, caráter de subordinação. 4. Recursos especiais não-conhecidos. (REsp 351.178/SP, Rel. Ministro MASSAMI UYEDA, Rel. p/ Acórdão Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, QUARTA TURMA, julgado em 24/06/2008, DJe 24/11/2008)
Enfim, a posição do Fisco parte, maliciosamente, de um preconceito: de que todas as sociedades de médicos são criadas para fins de economia tributária. Essa, definitivamente, não é a realidade. A maior parte delas volta-se simplesmente à organização da atividade profissional; efeitos trabalhistas ou tributários são meras consequências. Ou, por outro lado, os médicos constituem suas sociedades, na forma da lei, porque não têm vínculo laboral com hospitais ou outras entidades.
Note-se, ainda, que, para além dos outros requisitos, é impossível verificar a presença do elemento ‘subordinação’ entre médico e hospital na medida em que a atividade médica é intelectual e exige, inclusive por lei, plena autonomia técnica. Tudo isso avesso à subordinação (e, por óbvio, eventual estabelecimento de escala para atendimento ou de regras internas de funcionamento não bastam a essa caracterização). Ou seja, a própria natureza dos serviços afasta esse elemento do vínculo trabalhista.
Com isso, chega-se à conclusão que, autorizada legalmente a constituição e a contratação de pessoas jurídicas que prestem serviços médicos (categoria dos serviços intelectuais), deve estar assegurando a preservação da relação contratual entre as sociedades médicas e os hospitais, podendo ser desconsiderada tal relação somente em casos específicos (quando há confusão ou desvio de finalidade da personalidade jurídica), diferente daquilo que vem sendo feito pela Receita Federal.